Madrugada Vermelha - Parte 2

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O Velho

A aura avermelhada do céu se mistura com as luzes da cidade em uma fusão mal-feita e ilumina o quarto de Antônio. Junto a luz, a brisa verde caminha gentilmente até a cama onde se encontra o velho e sua esposa, a adorável Sandra.
O vento frágil acha uma fenda na camisa de dormir de Antônio e lhe acaricia a espinha. O arrepio toma-lhe as costas por um todo e em seguida se aloja em sua bexiga, é hora de acordar...
Ele apalpa a mesinha ao lado a procura dos óculos, hoje em dia se levantar sem eles é como se levantar sem os próprios olhos. Ali começa sua longa jornada cotidiana através da madrugada, é a primeira de quatro vezes que irá ao banheiro, sempre nas mesmas horas, a começar por essa que é pontual como a Morte. Uma da manhã.
A urina vai escoando pelo vaso, transformando o que era transparente em amarelo escuro. Antônio com uma mão se apóia na parede, não quer que aconteça como a um mês atrás quando ao cumprir seu martírio diário escorregou no tapete do banheiro e por sorte não quebrou nenhum osso. Pensando bem, esse tipo de acidente estava se tornando cada vez mais comum para ele...
De volta ao quarto, embaixo da coberta apreciando o som do silêncio o guerreiro Antônio pondera:


Olha como dorme calmamente minha doce Sandra, meu anjo... o que será que está sonhando? Talvez esteja sonhando com a noite do baile, todos aqueles vida-boas sentados contemplando-a, mas nenhum deles teve coragem de chama-la para dançar... mas eu tive, eu a convidei e foi comigo que ela dançou...
Ahhh, que dança... que dança! Quando ela encostou a cabeça no meu ombro eu soube, eu tive certeza de que ela seria a mãe dos meus filhos. Minha amada... minha doce Sandra...


Os cabelos brilhando com a luz que invadia aquele momento de privacidade a tornava ainda mais bela. Aos olhos de Antônio ela era a mulher mais linda de todas. Não lhe importava as rugas que tem uma mulher de 74 anos, não ligava se o dourado do cabelo havia se tornado prata e o bronze da pele se enferrujava com o tempo, ela era a perfeição na Terra, Afrodite devia inveja-la de tão linda.
Sandra é tudo que Antônio conhece, vivera apenas 20 anos sem ela, 58 ao seu lado, e mesmo assim se sentia pleno só pelo fato de vê-la dormir...
Novamente a brisa verde entrou no quarto, mas dessa vez forte e severa, fazendo chiar a janela, e junto veio um pensamento terrorista a Antônio:


Será que em meio a esse sono profundo, fantasia como seria a vida se não fosse eu a te convidar no baile? Será que sonha com rapazes da idade dos nossos netos tomando-lhe pela mão e te dando o prazer que meu corpo inerte e cansado já não pode mais proporcionar? Você foi a primeira mulher da minha vida, e foi também a ultima... foi...

O som do silêncio já não agradava mais Antônio, ele olhava em volta, despertando de seu preâmbulo. Sem querer bateu os olhos naquele que sempre vinha tirar-lhe o som do silêncio, querendo ele ou não.

Quando será que você volta de viagem Carlos? Será que já voltou e esqueceu de telefonar avisando? Se ainda estivesse aqui com certeza estaria no computador, trabalhando como sempre e eu poderia ir até seu quarto e mandar você ir dormir. Olha que velho maluco eu sou filho, sinto falta de brigar com você. Acho que quando te ver vou te abraçar, deveria ter feito isso mais vezes quando você era pequeno, não é? Onde será que você está agora? Espero que abrace bastante o Carlinhos, talvez esteja nesse exato momento brigando com ele por estar ouvindo música muito alto... espero que quando tudo estiver silencioso na sua casa, o Carlinhos esteja aí pra te acordar... pode parecer algo ruim, mas é bem melhor do que querer ouvir do seu filho e não saber onde ele está...

Tudo isso por ver aquela foto boba que tiraram quando Carlos era criança e os dois ganharam a competição de pipas do bairro. Antônio segura Carlos no colo com um sorriso com um sorriso contido. Carlos por sua vez está com os braços levantados e a bocona aberta de felicidade. Essa é a imagem da foto...
Hoje Carlos é empresário, tem um filho e uma filha. Débora, a mais nova se forma na faculdade esse ano... nenhum dos dois nunca brincaram de pipa...


Eu fui um bom pai, Sandra? Eu fui um bom marido?
Se eu não abraçava e beijava nosso filho é porque eu sempre quis que ele crescesse forte, preparado para a vida... eu sempre tentei dar o exemplo pra ele. Lembra quando ele cismou que podia me ganhar no braço de ferro? Ele treinou por várias semanas, ficou fazendo flexão, comendo só carne e frutas, lembra disso Sandra? Olha, eu vou te confessar, foi difícil vence-lo, parte de mim queria deixa-lo ganhar, porque ele tinha se esforçado tanto... mas eu tive que abrir mão de alguns prazeres para mostra-lo como é a vida não é mesmo? Tenho certeza que eu ainda posso ganhar dele...


Observando seu braço magro, mais forte que o da maioria dos seus amigos da mesma idade, Antônio se iludiu direitinho, tinha certeza que conseguiria...

Você, em compensação, sempre foi uma mãezona. Sabia a hora de ser dura e a hora de ser carinhosa, sempre esteve lá para advoga-lo quando eu era muito duro... você sempre sabia o que dizer pra me acalmar né? Minha companheira... queria ter estado mais presente, ter lhe dado uma vida melhor... mas você nunca reclamou... sempre esteve do meu lado... com o que será que sonha?

Observando Sandra, ele começou a pensar como seria a vida sem ela, e por um segundo, que Deus o livre, pensou no que aconteceria se ela morresse, ele não conseguiria viver sem ela...

Sandra? Sandra?
Porque Sandra não se mexe? Desde a hora que se levantou ela não virou, não resmungou. Nada... Sandra? Sandra?


Antônio tocou o braço cinza com fios azuis, farrapo de carne... o braço de sua amada.
Sandra ao sentir o toque de seu homem, seu amado, seu Hércules vencedor, instintivamente colocou a mão sobre a dele e abriu um sorriso, ainda dormindo.


É, a vida não acabou para a gente, minha amada imortal... agora se me dá licença, preciso ir ao banheiro novamente...

MiM

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Quem sou eu? Eu sou mim...
Eu sou mim, vivo em mim me escondendo do eu.
Desde quando eu tem o comando e eu, mim, perdi a luta? Virei prefeito corrupto de um corpo corrompido, cansado de lutar dou lugar ao eu que espera no falso mundo com desejo de tortura.
Quando menos espero, eu toma conta de mim, me sinto escorrido, extraído da essência, visualizando ações que eu tomo, que eu toma, mero espectador da própria semi-vida, deslocado como uma paulada na retina, escondido no espírito que foge e voa, deixando o recipiente vazio para recepcionar o vazio que é do eu. Que é, doeu.
Mas eu sou eu, parte de mim, ou seria eu, mim, parte do eu.
Não quero ser eu. Eu é monstro frio, andróide andrógeno, criatura da claridade da escuridão.
Quando sou eu, não vejo mim em mim.
Cada dia me torno mais eu e menos mim... não sei se sobrará muito de mim em mim, eu... eu...
Pois mim é fraco, agora sou mais eu!
Mim grita líquido adentro, pede ajuda com sinais de fumaça...
A eterna batalha entre mim e eu... duas forças opostas lutando pela mesma carcaça... todos perdem, eu me enfraqueço enfraquecendo a mim...
Eu quero paz... mim quer paz...
Eu vou embora...
Mim remorre nas cinzas...
Sem mais eu em eu, nem mais mim em mim. Sem mais eu em mim ou mim em eu.
Um recipiente vazio...

Madrugada Vermelha - Parte I

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O Menino Pedro

Em um pedaço de terra como qualquer outro, a cena que se vê não é estranha. Várias casas rústicas construídas em volta de uma praça insalubre, onde dormem os cachorros sem dono daquele lugar miserável. Em frente a praça uma igrejinha bege, institucionalizada, apenas mais uma repartição dos escritórios de Deus.
O sino da igreja badala doze vezes, os ponteiros se encontram e olham para o céu escarlate que dá o tom da sinfonia. Meia-noite.

- Pelo que reza, Pedro?

- Rezo para que o dia chegue logo, rezo para que logo pela manhã caia uma garoa agradável, e peço ao papai do céu que me deixe senti-la por alguns segundos. Que ela toque meu rosto, lave meus cabelos e limpe meus pecados.

A brisa púrpura entra por debaixo da porta principal da igreja, varre o longo tapete ecumênico, desvia para a direita, escorre pelos degraus espiralados e adentra o quarto onde está o menino Pedro e Padre Jonas.
No claustrofóbico quarto mal cabem os dois, apertados pelo guarda-roupa com a imagem da Santa e as roupas sacerdotais. O menino Pedro está ajoelhado, com os cotovelos apoiados na cadeira que está encostada à parede. A janela retangular quase tocando o teto ilumina parcamente os vultos do menino Pedro e Padre Jonas.
O padre, com a batina candidamente branca, recosta a mão no ombro do menino Pedro.

- Quando rezamos pro papai do céu, primeiro, temos que agradecer tudo aquilo que ele nos dá. Você tem que agradece-Lo pelo amor que seu pai e sua mãe tem por você, dar graças por eles serem tementes a Deus e permitirem que você venha aqui receber os ensinamentos de Cristo. E sobretudo, tem que agradecer por ter me encontrado, pois nunca vou te deixar seguir o caminho da perdição. Você entende isso, Pedro?

Pedro consente com a cabeça e se vira, olhando com seus olhos de nada os grandes e bondosos olhos azuis de Padre Jonas.

- E outra coisa, Pedro. Se queremos que o papai do céu atenda a nossas preces, temos que cumprir nossas obrigações e fazer tudo que agrada a Deus com bondade e prazer.

A gentil mão de Padre Jonas acaricia o ombro do menino Pedro, uma lágrima ocre escorre pelos olhos do menino Pedro, o menino Pedro está ajoelhado...

O Porquê

04:21 / Postado por Figgis / comentários (0)

O Porquê
Porque você é linda,
Porque não sabe disso,
Porque se esconde,
Porque te achei.

Porque é sensivel,
Porque é sensata,
Porque tem sentido,
Porque estou sentindo.

Porque é carinhosa,
Porque é corajosa,
Porque é carente
Porque faz careta.

Porque, porque porque...
Não sei porque,
Só te sinto e te quero...